sábado, 3 de setembro de 2011

Bonde de Santa Teresa, fato imoral e revoltante

Em 1 de setembro de 2011, dia em que o transporte por bondes no bairro de Santa Teresa, completou 115 anos, não houve comemoração, mas um protesto que reuniu moradores, ferroviários, vítimas e parentes do acidente ocorrido em 27 de agosto, apenas cinco dias antes. A tragédia deixou cinco mortos incluindo o motorneiro Nelson Correia da Silva, profissional com, no mínimo, 30 anos de experiência na condução dos bondes. Impossível não dizer que o acidente aconteceu por total falta de manutenção do sistema dos bondes. O descaso do poder público com um dos cartões postais cariocas era visível.

O bonde de Santa Teresa já fazia parte da paisagem da cidade.

A propósito do absurdo que aconteceu com o bondinho de Santa Teresa, uma amiga disse o seguinte: “Está me parecendo que eles não têm manutenção há um bom tempo, pois são vários acidentes muito próximos uns dos outros, coisa que não era comum. O meu receio é que essa possível falta de manutenção seja proposital, para que a prefeitura e os famigerados empresários de ônibus consigam tirar de circulação a única linha de bonde que conseguiu permanecer em atividade aqui no Rio. Esse pessoal que controla o poder (seja ele de que espécie for), é capaz de qualquer coisa!”

Infelizmente, eu penso exatamente como ela. Nunca entendi o porquê e até hoje não entendo (digo entender mesmo, de verdade, por trás dos panos), o Rio de Janeiro ser a cidade que mais tem horror a todo e qualquer modal de transportes que não seja o ônibus. Os donos das empresas de ônibus cariocas realmente mandam e desmandam nos transportes da cidade. Mas, sabe, eu ainda acho que isso não é tudo, pois se o poder público quisesse, já tinha acabado com esse cartel. Mas o que eu estou dizendo? Desde quando poder público no Brasil deseja acabar com cartel, qualquer que seja ele?! O que deu em mim? Desculpem-me. Foi um ato falho de ingenuidade. Já passou.

Um dos exemplos claros de que os empresários de ônibus têm poder por aqui é o fato de o VLT não ter sido implantado no Rio nem mesmo tendo as Olimpíadas de 2016 como justificativa e o dinheiro do PAC podendo ser negociado (se o governador e o prefeito realmente quisessem, teriam um joguinho de cintura com a mãe do PAC). Eu sei que eles não querem. Mas seria tão bom que a teoria pudesse valer na prática, pelo menos uma vezinha que fosse!

O fato de o VLT ser mais caro não justifica. Meu argumento está no parágrafo acima, mas para isso precisa "querer". Então, apareceu o problema do tempo, pois o VLT levaria mais tempo para ser construído. Ora bolas, mas se os nossos governantes e o próprio comitê olímpico cansaram de repetir que as Olimpíadas valiam a pena porque elas são justificativa para as inúmeras obras de melhoramentos de que a cidade tanto necessitava, blá, blá, blá... Como é que na hora do "vamos ver" eles dão um jeitinho de voltar à trás?! Certamente aqui eu acho que foi lobby dos ônibus. Foi assim também com as barcas para a Ilha do Governador, por exemplo. Quando elas começaram a emplacar, deram um jeitinho de fazer com que elas atendessem um percentual ínfimo de insulanos. E com o bondinho foi e continuará sendo a mesma coisa.

Alguém se lembra de um filme do Jean Manzón sobre os transportes cariocas do início da década de 50? Eu fiz um post aqui no blog sobre ele. O que me deixa pensando em algo além do cartel dos ônibus, é que essa coisa de "só ônibus" não vem de poucos anos. Vem de muito mais tempo.

Vou tentar fazer um exercício de voltar no tempo sobre os bondes no Rio de Janeiro. Os bondes elétricos começaram ainda no finalzinho do século XIX. O Brasil prometia um generoso futuro ferroviário. Allen Morrison, em sua obra "The Tramways of Brazil", diz:
1. Em 1859 o Rio de Janeiro iniciou operação com bondes antes de toda a Europa (exceto a França);
2. O Brasil teve um dos primeiros sistemas movidos a vapor;
3. O Brasil foi o primeiro país a ter locomotivas a vapor especialmente projetadas para rodar em ruas;
4. O Rio de Janeiro teve um dos primeiros sistemas elétricos do mundo;
5. Niterói parece ter sido a primeira cidade do mundo a ter bondes movidos a bateria;
6. O Brasil teve a maior frota de bondes abertos do mundo;
7. O Brasil teve a maior frota de bondes americanos, fora dos EUA;
8. Às vésperas da II Grande Guerra, 4.200 carros de passageiros circulavam em cerca de 2.250 km de linhas. Companhias canadenses operavam 2.200 carros, americanas cerca de 900, inglesas 400 e brasileiras o restante.
9. Em 1940, no seu apogeu, havia 30.000 empregados nessas companhias, que transportavam 1,5 bilhões de passageiros ao ano.

O primeiro bonde elétrico do Brasil e de toda América do Sul foi o nº 104 da Cia. Ferro-Carril do Jardim Botânico, que teve sua apresentação e entrada em serviço em 8 de outubro de 1892. Levando diversos convidados ilustres, ele partiu do centro da cidade e terminou a viagem inaugural no escritório da companhia, no Largo do Machado. Na fotografia, tendo o Passeio Público ao fundo, o terceiro da direita para a esquerda é o presidente da República, Marechal Floriano Peixoto (Charles Dunlop, Rio Antigo).


Primeiro bonde elétrico do Brasil e de toda América do Sul foi o nº 104 da Cia. Ferro-Carril do Jardim Botânico, em 8 de outubro de 1892.
No ano de 1908, foi introduzido o primeiro serviço regular de ônibus a gasolina do Brasil. Em comemoração aos 100 anos da abertura dos portos em 1808, foi realizada na Praia Vermelha a Exposição Nacional. O empresário Otávio da Rocha Miranda obteve, então, da prefeitura uma concessão para a implantação, ”em caráter provisório”, de uma linha de auto-ônibus que circulava ao longo da avenida Central, hoje Rio Branco. Os veículos também realizavam viagens extraordinárias do centro da cidade até o local da Exposição, na Praia Vermelha. A partir dos anos 1930, o tráfego de “auto-omnibus” começou a crescer desordenamente. O trânsito no Rio foi ficando cada vez mais complicado, até que nos anos 1950, chegou ao caos.

Sou grande admiradora do legado que Carlos Lacerda deixou à população carioca quando foi governador do Estado da Guanabara. Apesar de saber que ainda havia muito dinheiro de origem federal no estado, pois a capital havia sido transferida para Brasília e não podiam deixar a cidade do Rio de Janeiro jogada às traças; ainda assim, reconheço o mérito de ele ter se utilizado desta “benção” para fazer tudo o que fez. A propósito, se a transferência da capital fosse nos dias atuais, todos sabemos o que aconteceria com qualquer verba que aparecesse. Mas eu ia dizendo que apesar de admirar Carlos Lacerda, como administrador e figura pública, reconheço que nem mesmo ele, que tinha muita visão de longo prazo, fez nada a favor do transporte ferroviário, infelizmente. Ao contrário, ele fez de tudo para acabar com os bondes no Rio. Nos anos 1960, os bondes realmente atrapalhavam muito o trânsito. Mas eles (os bondes) não eram o problema. O trânsito é que nunca foi planejado no Brasil e, principalmente, no Rio de Janeiro. Em 1960, já era tempo de estarmos acostumados a utilizar linhas de metrô cortando a cidade em várias direções e se integrando com os trens urbanos. Deste modo, o trânsito no Rio não teria chegado ao caos que chegou em 1950.

Sabem de uma coisa? Eu começo a achar que, fora as maracutaias costumeiras entre o público e o privado, que também vêm de longa data, os nossos governantes não sabem fazer negócios. Vou escrever aqui algo de que não tenho muita certeza, mas me veio à memória as benesses com que os estadunidenses regalaram o Brasil no Acordo de Cooperação Militar assinado em 1942 para ter suas bases militares instaladas no país durante a II Guerra. Será que nós só ganhamos a CSN e a reestruturação da Estrada de Ferro Vitória – Minas, imperativa para a construção da Vale do Rio Doce? Se foi isso, acho muito pouco e mau negociado. Até porque o Brasil se comprometeu a fornecer minerais estratégicos para os EUA. Eu pediria algo mais substancioso. Acho que as bases militares no Brasil saíram muito "baratinhas". Eu pediria ainda a construção dos metrôs de Rio e São Paulo incluindo transferência de tecnologia. Tudo bem que falar é fácil, mas será que houve negociação? Ou será que o Brasil foi logo aceitando o que foi oferecido e pronto? Não sei. Não sei mesmo. Só conversando com um historiador para saber realmente.

Voltando ao assunto. Com a criação do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, seu primeiro governador, em resolução, decidiu que os proprietários de lotações se unissem em empresas. No dia 29 de dezembro de 1960, através do Decreto 318, foi criada a Comissão de Reestruturação da Superintendência de Transporte, objetivando a racionalização do sistema de transporte coletivo na cidade do Rio de Janeiro. Essa reestruturação (já era moda naquela época?!) acabou por fazer surgir outras empresas de ônibus, todas novinhas em folha. Em 31 de agosto de 1962, a Comissão Organizadora da Companhia de Transporte Coletivos - CTC tomava medidas paulatinas visando à operação dos ônibus elétricos e, em 3 de setembro do mesmo ano foi inaugurada a primeira linha de trólebus que conectava o Terminal Erasmo Braga à avenida Rui Barbosa no bairro do Flamengo. Em 1963, novas reformas. Decreto 1.507, publicado em 19 de janeiro, dizia: “O ônibus passa a ser o único veículo admissível no sistema de transporte coletivo. Os veículos tipo auto-lotação e microônibus começam a ser extintos de forma gradativa”. Com o fim das empresas de lotações surgem novas empresas de ônibus, muitas delas formadas por antigos proprietários de lotações. Moral da história: Os bondes rodaram pela cidade do Rio de Janeiro até 1964, quando foram retirados de circulação. Ainda hoje podem ser vistos circulando apenas pelas ruas do bairro de Santa Teresa. Os
trólebus foram introduzidos no Rio de Janeiro, assim como na maioria das cidades, em substituição aos bondes e começaram a entrar em serviço em 1962. No Rio de Janeiro, entretanto, acabaram em 1971.


Os tão esperados trólebus vindos da Itália em 1958 e postos em operação em 1962.
O governo de Negrão de Lima ficou marcado pelo aumento da influência dos ônibus na cidade visto que meios de transporte como o bonde foram extintos. Lotes de linhas de ônibus foram freqüentemente autorizados a rodar. Entre 1965 e 1970, 32 linhas foram criadas.

Dando um salto para o século XXI, vivendo num Rio de Janeiro com o sistema de metrô ainda sofrível, pergunto: por que, então, no Rio de Janeiro não teremos VLTs, se até Brasília já tem o seu com a construção iniciada em 2009? Por que teremos que amargar AINDA com os ônibus nas vias expressas que estão sendo especialmente construídas para as Olimpíadas de 2016: a Transcarioca, a Transolímpica e a Transoeste? Parece-me que VLT no Rio só mesmo no projeto do Porto Maravilha, mas ninguém pode garantir nada. Até 2016, muita água vai rolar.

Com todo esse background, não duvido nada que, tão logo o acidente do bonde de Santa Teresa tenha “esfriado”, principalmente na TV, os cariocas sejam brindados com um “moderno e eficiente” projeto de microônibus para operar no lugar dos “ultrapassados e obsoletos” bondes.


Os destroços do bonde acidentado em 27/08/2011


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