quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Que quantidade de bom senso você tem?

Sempre que me encontro em um debate (de ideias, é claro), observo que as pessoas costumam dizer com frequência, frases do tipo: “basta ter bom senso e ninguém sairá prejudicado”, ou pode-se dizer a frase com qualquer outro complemento, o sentido da expressão ‘bom senso’, neste caso, será o mesmo. Diante dessas situações, sempre digo ao meu interlocutor que bom senso é aquilo que todos acham que têm na quantidade suficiente, mas que não é bem assim na prática. As pessoas não entendem e me olham como se eu fosse um ET. Entretanto, muito antes de mim, um intelectual (este, um espécime verdadeiro de intelectual), já o dissera, no século XVII, em 1637, para ser mais precisa. Ele era René Descartes, um francês muito além do seu tempo, assim como outros homens e mulheres através da história do nosso planeta. Este post é mais um texto para fazê-los refletir. Estamos todos necessitando de mais reflexão no mundo em que vivemos.

Filosofar é refletir

René Descartes nasceu na França em 1596 e faleceu de pneumonia em Estocolmo, Suécia, em 1650. Viveu apenas 53 anos, o normal para aquela época. Obteve reconhecimento como matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria - fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome.


Em 1649, Descartes foi à Suécia, a convite da Rainha Cristina. Seu ‘Tratado das Paixões’, que dedicou a sua amiga Isabel da Boêmia, fora publicado. René Descartes morreu de pneumonia em 11 de Fevereiro de 1650, em Estocolmo, onde estava trabalhando como professor para a Rainha. Neste quadro, de Pierre Louis Desmenil, Descartes faz uma demonstração de geometria para a Rainha Cristina na Corte Sueca.

Descartes ingressou aos oito anos de idade no colégio jesuíta Royal Henry-Le-Grand, em La Flèche. Apesar de reconhecer que no colégio havia certa liberdade, em seu Discurso sobre o método declara, no entanto, a sua decepção, não com o ensino da escola em si, mas com a tradição Escolástica, cujos conteúdos considerava confusos, obscuros e nada práticos. Em 1629, começa a redigir o ‘Tratado do Mundo’, uma obra de Física, na qual aborda a sua tese sobre o heliocentrismo. Porém, em 1633, quando Galileu foi condenado pela Inquisição, Descartes abandonou seus planos de publicá-lo. Em 1637, publicou três pequenos ensaios científicos: ‘A Dióptrica’, ‘Os Meteoros’ e ‘A Geometria’, mas “o prefácio” dessas obras foi o seu grande reconhecimento futuro: o ‘Discurso sobre o método’. René Descartes, além de ter sido um célebre matemático e físico, foi considerado um dos fundadores da filosofia moderna. Aquele que buscou novas formas de ir além do pensamento medieval para justificar a ciência da sua época. René Descartes escreveu esta primeira edição, em francês, sua língua nativa, para torná-lo o mais acessível possível aos seus contemporâneos. Aproveitem para se deleitar com a leitura de apenas um pequeno trecho da Primeira Parte do “prefácio”, ou seja, do Discurso do Método.

Alguns só se lembrarão dele como o homem que disse "Penso, logo existo".

Na quarta parte do Discurso do Método, vocês encontrarão o que pode ser considerado o ponto de partida de toda a filosofa moderna e contemporânea: o Penso, logo existo.
”Enquanto eu queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa e, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa (...) julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.” (Descartes, 1962, p. 66)



Primeira edição do Discurso do Método de René Descartes, em sua versão original, em francês.

INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta, quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.
Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi.
Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá-la e que, nformado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me utilizar. Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza.



3 comentários:

  1. Mas que texto incrível, Eliane, parabéns por colocá-lo aqui!

    Separei duas colocações de dentro dele: 1 - "a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas."

    2 - "Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem."

    Acho que aqui não preciso dizer mais nada...

    Grande abraço!
    Adriano

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  2. Veio através de Descartes o que eu chamo de "Algoritmo do DEUS Lógico", neste mesmo "Discurso do Método". Seu texto deveria ter provocado júbilo entre os cardeais católicos, mas em vez disso, provocou sua sentença de morte. Ele teve que se refugiar na Holanda para não "ser suicidado" na França, por ter provado através da Lógica Pura a existencia de DEUS.

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  3. Meninos... Que bom que vocês gostaram. Há um tempão que estava querendo escrever sobre Descartes. Sou fã dele desde meus tempos de AF.

    Eu fiz uns comentários no blog do Adriano meio que falando sobre Deus x razão/lógica/ciência. Nem sempre consigo tempo suficiente para escrever posts elaborados como foi este. Levei o dia todo... até pq eu verifico tudinho antes de postar pra ver se não escrevi alguma bobagem. :))

    Tendo vocês dois como meus leitores, eu não tenho o direito de não fazer o melhor. :))

    bjs

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Tô só de olho em você...
Já ia sair de fininho sem deixar um comentário, né?!
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